Os olhos fugidios, porém certeiros, foi a primeira coisa que me fez olha-lo diferente.
Ele lia. Sentava ao lado de um criado mudo negro que tinha uma gaveta e um abajur de luz fraca em cima; vestia uma camiseta cinza que realçava o peitoral; tinha uma feição séria; um olhar castanho fixo num livro de contos depressivos. Parecia não ter notado a minha chegada. Sentei na poltrona da frente e comecei a observa-lo por inteiro, em silêncio. O balanço constante do pés indicava um certo desconforto, como de costume, mas não era possível saber, assim, de prontidão, o quê o causava. Após alguns segundos prestando atenção nos seus castanhos olhos de fogo, os meus começaram a marejar, inexplicavelmente, eu acho.
Uma lágrima que já estava no meio da minha face foi interrompida pela surpreendente e despretensiosa pergunta dele:
-Será que vai esfriar mais e terei que colocar uma calça?
Nada respondi.
Ele, que não tinha tirado os olhos do seu livro, levantou o rosto vagarosamente, fechou o livro e o colocou na mesinha ao lado, me observou por instantes, o que fez com que seus pés voltassem a balançar. Levantou lentamente a sobrancelha esquerda, como faz quando quer jogar charme ou me provocar, fez um bico ressaltando seus grandiosos lábios carnudos e tentou sorrir quando foi interceptado pela minha segunda lágrima.
-E agora? Disse ele.
-Eu queria poder decidir por você!
Silêncio.
Se a chama dos olhos de ambos encostasse em alguma parede, certamente a vizinhança inteira morreria num desastroso incêndio!
-Você pode parar com esse balanço nos pés, por favor?! Pedi.
-Claro. Desculpe. Eu... Olha, eu preciso voltar e pintar meu apartamento.
-Que cor você está pintando?
-Areia, sabe?
-Sei.
-Gosta?
-Gosto!
-Você tá bem?
-Não!
-Eu percebi.
-Eu sei.
-Quer que eu vá embora?
Foi nessa terceira lágrima que pela primeira vez na conversa, nossos olhos se refugiaram nos escassos móveis daquela sala.
Silêncio.
Num profundo e último suspiro ele exclamou:
-Eu me sinto um covarde, mas...
E balançou a cabeça extremamente reticente, indicando um não e depois um sim. Levantou, foi até a porta, onde se recostou e baixou a cabeça.
O que caíam dos meus negros olhos não eram mais escassas lágrimas, era um rubro líquido de uma ferida aberta que demoraria anos para cicatrizar e que deixaria marcas para sempre. Me dirigi até a porta e vomitei um drama mexicano com olhar fixo na maçaneta:
-Pronto... desisti. Vamos fazer assim: eu não te procuro mais e você esquece qualquer possibilidade de sonho que tivemos; não procure saber de mim e eu fingirei nunca ter te conhecido, se é que cheguei a te conhecer; tire a minha alegria da cabeça e apagarei seu sorriso da lembrança; se passar por mim, finja que acabou de falar comigo, ou seja, não precisa mais falar nada e... e... se a gente se encarar mais uma vez... eu... eu...não respondo por mim.
A porta bateu. Minhas pernas não tiveram forças para me manter de pé. Do tapete negro e sujo ainda deu pra notar o luto do sol.
Quando a lua apareceu, o rádio despertou com uma cantiga popular:
"Tá caindo fulô
Tá caindo fulô
Lá do céu, cai na terra
Ai meu Deus, tá caindo fulô"
Arrependi?
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